O governo pretende usar até R$ 20 bilhões de receitas a serem geradas pela proposta de reforma no Imposto de Renda para bancar o programa social que substituirá o Bolsa Família. O valor, que até agora não foi comentado publicamente pela equipe econômica, foi confirmado por um integrante do governo e deve equacionar em larga escala a busca por financiamento ao programa - a ser lançado pelo presidente Jair Bolsonaro nos próximos meses, às vésperas do calendário eleitoral.
O governo planeja usar a arrecadação extra a ser gerada pelas mudanças no Imposto de Renda para bancar o novo programa social. Mas o montante que poderia ser usado não foi divulgado oficialmente. Entre as medidas que aumentam a arrecadação no projeto de lei, está o fim do desconto simplificado de 20% no Imposto de Renda para quem ganha até R$ 40 mil por ano (pouco mais de R$ 3.000 por mês) e a tributação de dividendos.
O montante a ser usado no programa em decorrência da reforma é aproximadamente 20 vezes superior ao impacto fiscal do projeto de lei enviado ao Congresso na semana passada. Segundo anunciaram os técnicos do governo na última sexta-feira (25), as mudanças no Imposto de Renda gerariam um valor estimado de R$ 980 milhões em 2022 -embora o objetivo, afirmam diferentes integrantes do governo, é que o resultado da conta seja neutro.
O leve impulso arrecadatório anunciado já seria suficiente para zerar a fila de espera de 400 mil inscritos no Bolsa Família por um ano. Mas o montante a ser usado para financiar o novo programa ficará acima disso.
A diferença se explica porque, na visão do governo, nem todas as medidas da reforma tributária que diminuirão a arrecadação federal precisarão ter compensação orçamentária. Ou seja, parte delas dispensará uma contrapartida de elevação em outras fontes de receita -regra em geral exigida pela LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal).
A interpretação estaria em uma brecha da própria lei. O artigo 14 da LRF determina que a renúncia de receita deverá estar acompanhada de medidas de compensação orçamentária -mas em seu parágrafo 1o, afirma que fica entendida como renúncia a modificação que implique redução de tributos discriminada (para apenas um setor, por exemplo).
Como o governo argumenta que fez reduções lineares e indiscriminadas de impostos, a interpretação é que o impacto fiscal de boa parte das medidas não precisará ser compensado por outras iniciativas.
O governo ainda não divulgou quais medidas dispensam compensação dentro da reforma tributária, mas internamente já concluiu que a proposta concederia uma "sobra" jurídica de R$ 20 bilhões. É esse montante que poderia ser usado como compensação para outros projetos com impacto nas contas públicas, como o novo programa social em gestação.
A previsão de uso das mudanças no Imposto de Renda para financiar o novo programa foi até mesmo incluída na exposição de motivos que acompanhou o projeto de lei da reforma. "As alterações tributárias presentes neste projeto de lei [...] poderão ser consideradas, ao nível da arrecadação prevista para 2022, como medida compensatória para a despesa adicional [...] decorrente do novo programa social do governo federal", afirma o texto do governo.
Há mais de um ano o Executivo planeja lançar um novo programa social nos moldes do Bolsa Família, com elevação no valor pago aos beneficiários e possível aumento no número de atendidos. Mas as restrições orçamentárias vinham fazendo o plano encontrar dificuldades.
Caso a atual estratégia do governo vá adiante sem impedimentos, as medidas que geram arrecadação na reforma tributária resolveriam em larga escala os problemas da equipe econômica na equação do novo programa social.
Os valores estimados pelo governo ainda podem mudar ao longo da tramitação da reforma no Congresso, embora haja uma "gordura" de recursos para queimar. Parlamentares já apresentam resistências a pontos do texto como a tributação de dividendos, o que deve jogar para baixo a previsão de ganho de arrecadação com a medida.
O próprio ministro Paulo Guedes (Economia) também já acenou com mudanças após reações de empresários que veem aumento da carga tributária com a proposta. Além disso, também permaneceria como um ponto de atenção o atendimento da regra do teto de gastos em 2022 - ou seja, ainda haveria a limitação nas despesas mesmo obtendo mais receitas.
IR simplificado prejudica 2 milhões de contribuintes, recalcula a FGV
Após divulgar estudo em que apontava que 6,8 milhões de contribuintes passariam a pagar mais imposto com a limitação da declaração simplificada do IR (Imposto de Renda) proposta pelo governo, o Observatório de Política Fiscal do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas) refez a estimativa. Em nota retificada, o órgão agora afirma que a mudança poderá atingir 2 milhões de pessoas.
Depois de divulgar o estudo na terça-feira, o economista Manoel Pires, coordenador do observatório, informou nesta quarta-feira que a previsão anterior estava superestimada e captava uma base maior de contribuintes. Pires diz concordar com projeção feita pelos economistas Rodrigo Orair e Sérgio Gobetti, que apontaram uma possível elevação de imposto para 2 milhões de contribuintes se a limitação da declaração simplificada for aprovada pelo Congresso.
Atualmente, qualquer contribuinte pode optar por fazer a declaração simplificada. Nela, não há necessidade de incluir gastos que viabilizam deduções de imposto, porque há um desconto padrão e automático de 20% sobre a renda tributável. O limite atual desse desconto é de R$ 16.754,34.
Pela proposta do governo, a declaração simplificada só será liberada para contribuintes com renda anual de até R$ 40 mil, um valor aproximado de três salários mínimos por mês. O estudo da FGV, produzido pelos economistas Manoel Pires e Fábio Goto, pressupunha que todas as pessoas com renda de até R$ 40 mil, já declaram pelo modelo simplificado. Desse modo, usou dados da Receita Federal para estimar que a mudança aumentaria o imposto de 6,8 milhões de contribuintes.
"Na primeira versão dessa análise, havíamos estimado que a alteração poderia afetar 6,8 milhões de contribuintes considerando o limite de renda de R$ 40 mil. O economista Sérgio Gobetti sugeriu que utilizássemos uma linha de corte mais elevada, em torno de R$ 65mil, para considerar mais possibilidades de deduções que atenuam a base de cálculo. Com essa faixa e considerando cenários alternativos ele conclui, junto com o economista Rodrigo Orair, que a mudança deve atingir 2 milhões de contribuintes", informaram os pesquisadores.
"Em função das várias combinações possíveis e das imprecisões que surgem por conta disso, optamos por descartar essa estimativa e apontar a razão para essa decisão. Agradecemos ao Sérgio Gobetti pelas observações", informaram os pesquisadores, na nova versão do estudo.
Os economistas já haviam informado que como a projeção pode sofrer influência do novo comportamento que será adotado pelos contribuintes na tentativa de reduzir o imposto, além de depender de informações internas do governo, seria necessário que a Receita divulgasse seus números.
Desde o ano passado, o Ministério da Economia estudava extinguir o mecanismo da declaração simplificada. Na formulação final da proposta, no entanto, o governo optou por manter o modelo para faixas menores de renda.
Membros da pasta argumentam que o modelo simplificado somente fazia sentido quando o mundo não era digitalizado e os contribuintes tinham um trabalho enorme para guardar, reunir e recuperar a papelada que seria apresentada para viabilizar as deduções.
Fonte: Jornal do Comércio 01/07/2021